Nos anos 80, Goiânia era movimento: a capital pulsava entre a expansão urbana e a efervescência cultural
Não por acaso, no ano de 1988 nascia no Centro-Oeste do país, no Paralelo 16º Sul, a Quasar Cia de Dança. Um grupo que surgiu pela inquietude produtiva e criativa dos seus fundadores: Vera Bicalho e Henrique Rodovalho, egressos do Grupo Energia e dos processos criativos de Julson Henrique (1953-1995), um dos precursores da dança contemporânea em Goiás.
Desde o início, criou-se um sotaque próprio, delicadamente inspirado nas diversas artes e suas antíteses, criando um mundo visual e comunicacional diagramado em frames e luzes. Nada linear. Nada analógico, apesar dos tempos. Despontou mundo afora por sua capacidade de discutir o próprio ser humano, fazendo dele sua principal fonte de inspiração.
O nome não poderia ser outro: corpos que circundam um centro hiperdenso, que se fundem na mais poderosa fonte de energia já descoberta, que gera um feixe de luz que viaja até nós, remontando o próprio nascimento do universo.
Ao todo são 30 espetáculos criados e irradiados nas mais diversas direções geográficas. Exibições públicas de uma obra que se tornou uma escola, uma referência para mais e novos criadores.
Desde 1988, a invenção do movimento como linguagem do humano
Fundada em 1988 em Goiânia, a Quasar Cia de Dança, sob direção de Vera Bicalho e criação de Henrique Rodovalho, consolidou-se como um dos marcos da dança contemporânea no Brasil. Desde o espetáculo inaugural Asas (1988), a companhia já delineava uma proposta estética ousada, em que luz, imagem, som e corpo coexistem de maneira indissociável. A dança, ali, não era ponto de partida, mas um elo entre linguagens artísticas.
Ao longo das décadas de atividade, a Quasar construiu um repertório marcado pela experimentação cênica, pelo hibridismo estético e por uma pesquisa corporal que tensiona fronteiras entre técnica e afeto, cena e dança, dramaturgia e vida. Espetáculos como Versus (1994), Registro (1997), Divíduo (1998) e Coreografia para Ouvir (1999) exemplificam essa trajetória de inovação, com inserção de elementos do cotidiano, depoimentos reais, cenários urbanos e sonoridades populares ou não convencionais. Há uma constante quebra da “quarta parede”, numa tentativa de fusão entre palco e mundo.
A linguagem artística de Rodovalho também revela um olhar sensível sobre as questões humanas mais íntimas: solidão, memória, amor, envelhecimento, identidade, desejo. Peças como Empresta-me Teus Olhos (2001), Só Tinha de Ser com Você (2005) e Sobre Isto Meu Corpo Não Cansa (2014) são exemplos dessa abordagem poética e emocional. O uso da trilha sonora – muitas vezes construída a partir de depoimentos, músicas populares ou sons urbanos – é um traço recorrente de sua estética.
Essa pesquisa poética e afetiva continua a reverberar nas criações mais recentes da companhia. A distância entre dois (2016) explora os silêncios do amor e do anti-amor, a atração mais equilibrada, os gestos mínimos e as subjetividades que atravessam as partidas e chegadas, num misto entre paixão, prazer e sedução.
Já O que ainda guardo (2018) é um tributo à brasilidade, à Bossa Nova e à própria história da companhia, que completava 30 anos naquele ano. O espetáculo costura afetos, memórias e a leveza cotidiana em uma composição que se revela como joia rara da cena contemporânea.
Em Estou sem silêncio (2019), a Quasar adentra com delicadeza e potência o universo feminino. Com quatro intérpretes em cena, a obra reverbera as inquietações e as urgências das mulheres de nosso tempo, falando sobre empoderamento, desejo, resistência e liberdade com irreverência e profundidade.
Carinhosamente Juntos (2022) representa uma nova abertura: uma criação com bailarinos e pessoas com deficiência, construída a partir de encontros marcados pela escuta, pelo afeto e pela potência dos corpos em suas singularidades. Mais que espetáculo, uma celebração do convívio e da diversidade, onde dança e inclusão se entrelaçam de forma orgânica.
Já em Menos da Metade (2023), a Quasar se volta para o Cerrado, bioma que abriga e inspira a companhia há mais de três décadas. A coreografia surge como manifesto poético sobre a urgência da preservação ambiental, evocando com movimentos, texturas e atmosferas sensoriais a grandiosidade e a fragilidade dessa paisagem ameaçada.
A história da companhia é inseparável da atuação da diretora Vera Bicalho, responsável pela gestão e expansão da Quasar em projetos de formação, como a Escola e a Quasar Jovem. Juntos, Rodovalho e Bicalho transformaram a companhia em um polo irradiador de dança contemporânea no Centro-Oeste brasileiro, rompendo com a centralização cultural do eixo Rio-São Paulo.
Ao longo de mais de 35 anos, a Quasar construiu um patrimônio imaterial de valor universal, reconhecido tanto no Brasil quanto no exterior. Sua dança é simultaneamente instintiva e elaborada, local e global, racional e visceral. E, sobretudo, profundamente humana.