Uma jovem talentosa, que em 2015 completou 27 anos. Nascida em Goiás, na capital Goiânia, criou um sotaque próprio, delicadamente inspirado nas diversas artes e suas antíteses, criando um mundo visual e comunicacional diagramado em frames e luzes. Nada linear. Nada analógico. Despontou mundo afora por sua capacidade de discutir o próprio ser humano, fazendo dele sua principal fonte de inspiração. Por sua capacidade de comunicação com as mais variadas plateias ressoou em territórios distintos. Conquistou palcos dançando temas ontológicos que absorvem o homem em suas mais íntimas aspirações. Pincelou essa construção com pitadas de um humor sutil e quixotescamente ingênuo, que travou batalhas inimagináveis com o mundo da abstração e da poesia.
Essa não é a descrição de uma pessoa, mas poderia ser. Trata-se certamente de um corpo que se move homogêneo, ainda que impulsionado pelos desejos individuais de suas partes, essas sim, heterogêneas. Esta é a descrição de um grupo que desde sua fundação reuniu almas inquietas, ansiosas por discutir suas relações com o mundo. E foi assim que em 1988 surgiu um Quasar no Centro-Oeste do Brasil. O nome não poderia ser outro: corpos que circundam um centro hiperdenso, que se fundem na mais poderosa fonte de energia já descoberta, que gera um feixe de luz que viaja até nós, remontando o próprio nascimento do universo. Ao todo são 25 espetáculos criados e irradiados nas mais diversas direções geográficas. Por ano, uma média de 40 (quarenta) exibições públicas de uma obra que se tornou uma escola, uma referência para mais e novos criadores.
Caminhos abertos
Se para alguns no início era o verbo, para um Quasar no início era luz. Talvez por isso o primeiro espetáculo da Quasar falava através de sua iluminação. ASAS (1988) foi a primeira criação de Henrique Rodovalho à frente da Companhia da qual se tornaria coreógrafo residente. Aquele era o pontapé inicial para que uma fagulha em Henrique fizesse dele um investigador de possibilidades, e um diretor de cenas que, a princípio, não traziam exatamente a dança como ponto de partida, mas sim uma mistura de conhecimentos e observações sobre o mundo, sobre o corpo, sobre o vídeo, a foto, a música. Um espírito que se uniu às vocações próprias de cada bailarino, ou de cada ator, que daquele ponto em diante foram reunidos não por sua capacidade técnica, mas por uma disponibilidade afetiva. E foi assim que a Cia iniciou uma trajetória de criações que fugiam do balé moderno convencional e apresentavam ao público de Goiânia algo novo, inusitado, desafiador e vibrante.
Os 9 (nove) espetáculos seguintes, criados por Henrique Rodovalho e transmutados pelo elenco da Quasar através de suas experiências pessoais, fizeram da dança um espaço de experimentação artística e descobertas de novas possibilidades. Estudos (1989) e Sob o mesmo azul (1990) já traziam a linguagem do vídeo contracenando com os corpos, a performance, a música executada em cena por não-bailarinos, o silêncio como sonoridade possível para a dança, uma caixa cênica toda aberta ao público. A improvisação e a capacidade de encenação já eram parte fundamental para aquele elenco, obviamente cheio de contrastes. A música de Itamar Assunção completava o absurdo desejado. Não Perturbe (1992) inicia a trajetória de cenas curtas e bem-humoradas da Companhia, e uma relação com trilhas sonoras que fugiam do senso comum, como as músicas quase teatrais de Os Mulheres Negras e Tom Waits. A experiência deu certo e fez com que a Quasar caísse no gosto de plateias que até então não frequentavam espetáculos de dança. Senhores de Poucas Visões (1993) e Quatros (1994) surgiram para espaços exíguos e foi apresentado em palcos alternativos, como o café-teatro Zabriskie, que lançava um novo nicho de entretenimento na capital. A Quasar mais uma vez aceitava um desafio.
No sexto ano Rodovalho reuniu suas experimentações, sintetizando conteúdos e informações que até então giravam em torno de um núcleo superaquecido, e criou um novo trabalho de longa duração, coreografado e iluminado sob sua direção, pensado para o palco italiano de grandes proporções e desenhado com a parceria de outros criadores, como o cenógrafo Shell Junior. Com trilha sonora de Arnaldo Antunes, figurino minimalista, movimentos audaciosos, Versus (1994) surtiu efeito imediato, ganhando os olhos do público e da crítica, primeiramente internacional – principalmente na Alemanha -, e posteriormente de todo o Brasil. Aquela era a obra que alavancaria a carreira da Companhia e faria com que ela se tornasse um patrimônio nacional.
A próxima criação da Quasar veio com um sotaque tão brasileiro, e com uma qualidade tão notória, que foi considerada um dos principais espetáculos de dança do ano de 1997 em todo o Brasil. Das 10 estatuetas do Prêmio Mambembe, concedido pela Fundação Nacional de Arte – Ministério da Cultura, Registro (1997) recebeu 5 delas. A necessidade humana de registrar seus momentos era o tema daquele trabalho, que antecipava uma época de autorretratos e exposições exacerbadas da própria imagem. Mas Registro também falava de amor e Rodovalho começava então a explorar os sentimentos humanos mais íntimos e febris, e com isso, a traçar também um perfil de sua linguagem artística, de sua forma de comunicação com o público.
Registro fez com que a Quasar conquistasse, além de plateias, novos investimentos públicos e privados. Com uma estrutura administrativa renovada o ano de 1998 foi decisivo para que o processo de investigação de Rodovalho também se transformasse. Foi assim que nasceu Divíduo (1998). Esse é o espetáculo que o próprio coreógrafo destaca como marco na construção de uma linguagem própria da Companhia. A obra falava de seres humanos solitários, de um mundo contemporâneo de seres e coisas divisíveis. A movimentação que se seguiu ao tema fragmentava o corpo em partes orgânicas e independentes. O cenário, grandioso, exibia o concreto do habitat de seres urbanos. A realidade era escancarada no palco. A quebra da quarta parede trazia um entregador de pizza até o palco e levava o bailarino para fora do teatro. A realidade também fazia com que o elenco dançasse enquanto comia sua fatia do pedido solitário. A trilha sonora exclusiva, obra do músico Hendrik Lorenzen – um parceiro que também se tornou perene – foi criada com sons urbanos. A plateia contribuía com depoimentos sobre solidão, coletados e editados para entrarem em cena no tempo ideal da coreografia. Uma coletânea de ideias que eram as provas indubitáveis de que Henrique continuava a quebrar paradigmas.
A trajetória internacional da Companhia consolidou-se com o espetáculo seguinte. Coreografia para Ouvir (1999) levava para o palco a cultura popular brasileira. Sua criação se deu por inspiração de um programa de TV chamado Sons da Rua. O áudio desses clipes virou trilha sonora. Uma sonoridade inusitada, declamada, falada por pessoas simples, das ruas do Nordeste do Brasil, acompanhada por movimentos que se baseavam na duração, nas batidas, no comprimento de cada um desses sons da rua.
O tempo e a velhice foi tema do espetáculo seguinte. Empresta-me Teus Olhos (2001) era dividido em duas partes, e sua criação envolveu um trabalho de imersão jamais experimentado pelo elenco e equipe de produção. Os bailarinos foram levados às ruas em situações inusitadas e comoventes, enquanto moradores de um lar de idosos eram filmados e ouvidos para a elaboração de vídeos e sons que se transformaram em cenário e trilha sonora. Foi um trabalho que comoveu plateias. Em seguida veio O+ (2004), que discutia a própria dança. Com esse trabalho Rodovalho provocou e experimentou novos processos de criação. Pela primeira vez a Quasar convidou a plateia a subir ao palco e participar do espetáculo. Foi assim que em um momento de ruptura, ou de redescoberta, o coreógrafo adentrou em um trabalho completamente distinto, e com isso Rodovalho criou uma obra que se tornaria unanimidade.
Só tinha de ser com você (2005) era pura poesia e abstração. Embalados pelas músicas entoadas por Elis Regina e Tom Jobim, os movimentos eram quase matemáticos. Era intencional que a conjunção de duas artes distintas – dança e música – pudessem ser lidas pelo inconsciente do espectador por meio de sua memória afetiva, e não por uma interpretação pasteurizada e óbvia. E novamente a Quasar conquistou público e crítica. Novamente a Quasar se lançou em experiências internacionais, dançando no continente Europeu, Asiático, Americano. Novamente a Quasar ganhou as páginas da imprensa nacional, com aquele que foi considerado um dos melhores espetáculos de dança contemporânea do Brasil do ano de 2005. A Revista Bravo! e um ranking do jornal O Estado de S.P encabeçaram essa reação. Só tinha de ser com você continua no repertório de espetáculos da Companhia, e por isso mesmo se tornou uma das obras mais apresentadas, assim como Versus, Coreografia para Ouvir, e dois outros que viriam em seguida.
No vigésimo ano da Quasar Cia de Dança Rodovalho levou para o palco uma festa de aniversário. Por instantes de felicidade (2007) trouxe de volta uma leveza e um colorido que fez parte de trabalhos iniciais da Quasar. Depois das comemorações, Rodovalho viveu uma guinada pessoal. E o próximo trabalho da Companhia, que também seria um dos carros-chefes do seu repertório, refletiu esse novo momento. Céu na Boca (2009) mais um vez trouxe a abstração. E a obra repercutiu principalmente por sua movimentação rica e inusitada. O público internacional cedeu às imagens e corporeidades intensas. Tons de cinza, banhados por luzes brancas e verdes, e a riqueza do tema principal com que Rodovalho se alimenta: a existência e a emoção humanas.
E como os movimentos de um Quasar são sempre circulares, os espetáculos da Companhia também são criados em plena recorrência. No Singular (2012) é um trabalho que mais uma vez retoma o início da trajetória da Companhia, sobrepondo cenas, que não compõem um roteiro linear, mas sim quadros curtos e rápidos. O tema deste trabalho passa pela velocidade com que o ocorrem as relações humanas virtuais. E mais uma vez Henrique inova, não só convidando o público para participar do espetáculo no palco, como lançando na internet um vídeo, para que esse mesmo público ensaiasse a coreografia em casa, antes de ir assistir ao espetáculo no teatro.
O criador inquieto, ele próprio envolvido na velocidade das relações comunicacionais, não pensa linearmente. Em 2013, nas comemorações dos 25 anos da Quasar, Henrique se vê às voltas com um projeto que propõe um diálogo entre dança e cinema. Por 7 vezes é um espetáculo que nasceu para ser filme. A abstração mais uma vez ganha a cena, e a dança se move em direção a um organismo biológico. As partes do corpo divididas em 7 temas: coração, vísceras, pernas, braços, olhos, boca, sexo. O desejo é o tênue fio condutor que liga as partes, e o resultado, para além do espetáculo, continua a inquietar o criador, que deixa no ar uma pergunta: a obra só estará finalizada quando ela existir dentro de uma película?
E não obstante a velocidade com que Rodovalho produziu nos 15 últimos anos, já no ano seguinte o coreógrafo compõe Sobre isto meu corpo na cansa (2014). A mais recente criação da Companhia volta a falar de amor. Um amor leve, cômico, romântico, banhado por uma trilha sonora composta por músicas muito peculiares, interpretadas somente por mulheres.
É preciso ter em mente que a trajetória de criações do coreógrafo da Quasar Cia de Dança se confunde com a produção e administração da diretora Vera Bicalho, que no início também integrou o elenco da Companhia. Por essa atuação nos bastidores, a jovem excêntrica, nascida há 27 anos no Planalto Central, se tornou cada vez mais engajada nas demandas por mais e novos profissionais de dança, por mais e novos espaços e possibilidades criativas, por mais e novos públicos e plateias. E é por isso que a trajetória da Quasar também se confunde com o amadurecimento da dança contemporânea no Estado de Goiás. Projetos como o Espaço Quasar, o Núcleo de Pesquisa do Espaço Quasar, a Escola Quasar de Dança Contemporânea e a Quasar Jovem, todos eles existiram para que houvesse a adubação desse solo, que depois de mais de duas décadas continua a dar frutos, e hoje é cenário promissor para novos projetos.
Como é possível notar por essa linha da vida, a linguagem única da Quasar permanece em constante movimento, assim como o seu núcleo criativo, em expansão. Nascida da confluência das mais improváveis características, entre elas a distância do mundo acadêmico e o deslocamento da Cia dos grandes centros culturais, seu reconhecimento é notório, e sua capacidade de comunicação com o público ainda mais intensa. Sua maturidade e padrão de excelência produziram obras com a qualidade cênica necessária para se tornar referência não só no Brasil, mas em diversas partes do mundo. É assim que a Quasar Cia de Dança constrói um rico patrimônio imaterial, pertencente a toda a humanidade, e que reflete justamente o que é esse homem em seu habitat. Uma reflexão que nem sempre passa pela lógica da compreensão efetiva, mas sim pelo canal que mais liga o homem à sua natureza: a emoção. Os formatos são sempre variados, mas o ser humano ainda é o fio condutor dessa inquietação.
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